segunda-feira, 2 de novembro de 2009

No meio do caminho, a Lagoinha

Por Daniela Macedo




"Não fui lá nesse dia. Não queria ver o fim melancólico e desnecessário da Praça.
Em vez de tombá-la como patrimônio público, o último local mais característico da vida noturna da cidade, preferiram destruí-la. E destruí-la à toa, sem a menor necessidade. O fato é que as tais autoridades municipais foram lá, muitos curiosos para ver o espetáculo de uma implosão; toda a impressa falada e escrita; as estações de televisão. Também nós, do Jornal do Shopping, mandamos repórter e fotógrafo registrar o fim da velha Praça.
E no meio da pequena multidão silenciosa, Lagoinha soltou o samba:

“Adeus, Lagoinha, adeus.
Estão levando o que resta de mim.
Dizem que é força do progresso
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.”

Houve um minuto de silêncio após o último acorde da música. E, depois, todo mundo viu um prédio ser jogado no chão. "

(Wander Piroli em Lagoinha, da editora Conceito)

























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“Não dou mais entrevistas! Chega! Só nesta semana já foram sete entrevistas. Se-te”, enfatiza Samuel, um dos engenheiros responsáveis pela obra de duplicação da avenida Antônio Carlos. E, em tom de impaciência, conclui: “Copia da colega, é tudo a mesma coisa, não vou repetir!” Vira-se de costas e segue em direção oposta à aluna-jornalista ali presente. Samuel não compreende, mas é grande a importância do registro, da documentação, da palavra.

Mais do que um lugar por onde passa a avenida Antônio Carlos, a Lagoinha, um dos bairros mais antigos da cidade, tem sua existência reforçada por palavras que ajudam a contar sua história e parte da de Belo Horizonte. Em Adeus Lagoinha, samba do compositor Gervásio Horta, o bairro é homenageado em um momento de transformação; o mesmo retratado na crônica Lugar, do jornalista e escritor Wander Piroli, publicada no livro Lagoinha, uma de suas homenagens ao bairro em que nasceu e viveu durante muitos anos.

Lagoinha foi a última publicação de Piroli, em vida, e a primeira da coleção BH. A cidade de cada um. Impossibilitado de escrever, devido a um derrame cerebral, o autor reuniu parte de suas crônicas sobre a Lagoinha, publicadas nos jornais durante sua trajetória literária, e as transformou no primeiro volume de BH. A cidade de cada um. A coleção, projeto dos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião, que objetiva registrar fragmentos da memória de Belo Horizonte, publicou, além de Lagoinha, os livros Mercado Central, Estádio Independência, Rua da Bahia, Parque Municipal, Fafich, Praça Sete, Livraria Amadeu, Sagrada Família, Pampulha, Lourdes, Cine Pathé, Carmo, Caiçara, Colégio Sacré Coeur de Marie, Carlos Prates e Morro do Papagaio; todos de autores diferentes.

Tanto a crônica de Wander Pirolli, quanto a música de Gervásio Horta retratam o fim da Praça Vaz de Mello, conhecida como antiga Praça da Lagoinha. Além da extinção da Praça, o surgimento do Complexo Viário da Lagoinha e a implantação do metrô na região compuseram parte das transformações do bairro nos últimos trinta anos; transformações que trouxeram progressos à região, mas que não evitaram o descaso à memória histórica e cultural do lugar.

Mais palavras sobre a Lagoinha estão em Lagoinha, meu amor, livro que reúne crônicas de Plínio Barreto, publicadas no jornal “Estado de Minas” entre os anos de 1981 e 1995. Um trabalho com intenção confessada e registrada na apresentação da obra: “-Porque a Lagoinha é para este velho escriba não apenas um bairro, mas um pedaço sagrado neste chão de Belo Horizonte. Nele nasci numa casinha singela de uma rua pacata, antes denominada Ferros, depois Coromandel, hoje Itatiaia. Onde fui batizado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Pequeno universo onde fiz correr uma infância descuidada, onde ganhou espaços uma adolescência cheia de planos, e onde hoje, dele ausente, vez por outra uma velhice, garimpeira sonhadora maneja com mãos trêmulas uma bateia de esperanças em busca de diamantíferos fragmentos de um passado inalcançável”.

Uma variedade de ilustrações ajuda a compor o cenário das crônicas de Plínio Barreto. São fotos que contam a história da Lagoinha, como a Feira Permanente de Amostras, onde hoje se localiza a rodoviária; a antiga Praça da Lagoinha fotografada em 1930; a avenida Antônio Carlos em construção; o início da rua Fagundes Varela, acesso à favela “Buraco Quente”, que ficava ao pé da Pedreira Prado Lopes, e levava esse nome devido às brigas constantes que havia ali; o conjunto habitacional IAPI, ainda em fase de acabamento; e diversas construções históricas da rua Itapecerica e da região.

De acordo com Françoise Gean, historiadora da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, cerca de trinta casas, dentre as que compõem o conjunto arquitetônico da Lagoinha, foram listadas como “monumentos de grande importância para a cidade”. Das trinta, apenas seis são tombadas pelo Patrimônio Histórico e Cultural, e não há, no momento, nenhum projeto para a revitalização dessas casas.

Indispensável ao fluxo do trânsito entre a região central de BH e a da Pampulha, a duplicação da Avenida Antônio Carlos é a atual transformação pela qual passa a Lagoinha. Segundo dados da Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas (Setop), a obra beneficiará 85 mil veículos por dia, com quatro faixas de tráfego em cada sentido da avenida e duas faixas exclusivas para ônibus, também em cada sentido. Sete viadutos serão construídos e a largura das pistas, que atualmente é de 25 metros, passará a ser de 52. Ainda de acordo com a Setop, a estimativa é que, nesta segunda fase da duplicação, 4.700 empregos diretos e indiretos sejam gerados.

Quanto à geração de empregos, os benefícios já são visíveis. O ajudante geral Welbert Rocha, de 19 anos, ao contrário de Samuel, alegra-se ao falar das obras. Contratado há seis meses, Welbert é um representante dos 1.500 empregos já criados. “Fui contratado para esta obra, mas dependendo do desempenho do funcionário, eles costumam chamar para trabalhar em outras obras.” A alegria de Welbert é também reflexo da boa perspectiva que leva para o futuro. “Pelo bom desempenho que tenho apresentado aqui, acredito que serei chamado sim para outras obras.”

Outro exemplo de trabalhador recém empregado é do vigilante Rogemiro Vieira. Contratado há sete meses, Rogemiro passa as noites no local da obra, zelando pela segurança do material de construção. “Aqui tem que ficar de olho, se bobear tem um pessoal aí que rouba mesmo”. Viúvo e morando com a mãe, o vigia também mostra satisfação com o novo emprego e diz não se importar em passar as noites trabalhando.

O “ficar de olho” é uma necessidade constante na região da Lagoinha, e não é de hoje. No livro de Wander Piroli, uma referência à rua Paquequer sintetiza muito bem esse lado crítico da região: uma rua de um quarteirão só, que abastecia sozinha todo o noticiário policial de Belo Horizonte. No mesmo livro, ao falar das ruas que compunham o bairro, outra referência à má fama da região: “Do outro lado, pegava também a rua Diamantina, embora algumas pessoas que ali moravam não gostassem de ser da Lagoinha. Mas eram. E, no fundo, tinham um certo orgulho”.

As obras na Antônio Carlos continuam; a “cara” da região vai se transformando, casas são demolidas, comércios deixam de existir; mas a insegurança não. Justamente o que não deveria permanecer permanece. “A insegurança”, insiste, “gosta da região”. Ou são as autoridades que insistem em não tomar as [reais] necessárias providências?

Um aparente mendigo caminha à beira da construção. Caminha e para, caminha e para, caminha e para. A aluna-jornalista aproveita a proximidade do vigia da obra para falar com o mendigo. Não fosse o vigia, ela teria medo. Sente dor ao pensar assim. Medo do ser humano! Doloroso, desumano, mas real: não fosse o vigia, ela teria medo. O homem diz apenas que não dá mais para ficar ali, que precisa de outro lugar. E segue; agora, um pouco mais rápido do que antes, demonstrando certa desconfiança. Seus passos parecem estranhar o fato da moça ter lhe dirigido a palavra. Coisa estranha e medonha, um diálogo entre humanos! E, do diálogo, apenas uma conclusão: era um homendigo.

Homendigo foi um termo criado ali, naquele momento, já que o homem não disse quem era, não disse seu nome, nem o que fazia ali, nem o que fazia da vida. Só disse “outro lugar, não dá mais, preciso de outro, outro lugar”. E isto pronunciado bem devagar, cada trecho entre as vírgulas, como se estivesse perdido em seus pensamentos. Homendigo define, então, a situação antissocial daquele homem, que mesmo sem ter feito nenhuma mendicância naquele momento, parece um mendigo; que, mesmo sem ter demonstrado nenhuma ameaça, faz com que a moça necessite da presença do vigia; e que, mesmo a moça também não demonstrando nenhuma ameaça, faz com que o homem necessite se afastar dali um pouco mais rápido do que antes.

A duplicação da avenida Antônio Carlos, na verdade, complementa a Linha Verde, um projeto do governo do Estado, em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte, que objetiva facilitar o acesso entre o centro da capital e os aeroportos da Pampulha e de Confins, criando um corredor de ligação entre esses pontos. Além disso, existe também interesse em “abrir caminhos” para a Cidade Administrativa do Estado de Minas Gerais, uma construção arquitetônica que abrigará a administração pública estadual.

Duplicação da Antônio Carlos, Linha Verde e Cidade Administrativa são projetos com atributos que certamente trarão desenvolvimento para Belo Horizonte e Minas Gerais. Somados ao progresso, todos se propõem a serem sustentáveis. Mas o que é sustentabilidade além de uma palavra na moda? A definição mais aceita mundialmente foi apresentada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 1987, em um documento chamado “Nosso Futuro Comum”. Conhecido também como "Relatório Brundtland", o documento define desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as futuras gerações atenderem às suas próprias necessidades". E explica que sustentabilidade se refere à continuidade dos aspectos ambientais, econômicos, sociais e culturais de uma sociedade.

Em uma análise mais cuidadosa do projeto das obras na Antônio Carlos, encontram-se possibilidades economicamente sustentáveis, como geração de empregos e atração de investimentos. Tudo isso, além do lado ambiental, com as 1.500 árvores previstas no projeto paisagístico, para serem plantadas ao longo da avenida. Quanto à sustentabilidade social, há apenas reflexos das áreas econômica e ambiental, mas nenhuma perspectiva para homendigos.
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Por enquanto, a Lagoinha tem estado apenas no meio do caminho de obras memoráveis para Belo Horizonte. Obras memoráveis para o crescimento econômico, para o governo, para as melhorias de que o trânsito necessita, enfim, para as boas consequências que todo esse progresso trará. Mas e a memória histórica e cultural da região? E os problemas da criminalidade? E as vidas sub-humanas que passam por ali? Por enquanto, nenhuma ação, nenhuma providência, nenhum projeto. Mas ainda está em tempo. Ainda há tempo para não se repetirem os erros do passado, para que a Lagoinha deixe de estar no meio do caminho para fazer parte dele. Quem sabe a próxima reportagem sobre esse assunto possa ser intitulada “Uma parte do caminho, a Lagoinha”?
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REPORTAGEM E FOTOS DE DANIELA MACEDO
POSTADO POR DANIELA MACEDO

Um comentário:

  1. -Use um Manual para normatizar o texto;
    -Vírgula entre sujeito e verbo: A alegria é (-1).

    Nota: 24/25.

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