segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Reforma em casa

Obras de reforma da Antônio Carlos chegam ao quintal dos moradores de rua


As casas a beira da Avenida Antônio Carlos na região da Lagoinha, pouco a pouco, foram cedendo seus lugares para os carros passarem. A cidade, que primeiramente era estruturada para a habitação, torna-se cada da vez mais um território para o transporte e a locomoção de veículos. É desta forma que somos, involuntariamente, abduzidos pelo progresso. Estamos paulatinamente sendo sufocados pelo mar de asfalto que se espalha pela capital.

Ao passo que as máquinas abrem as vísceras e expõem a terra vermelha deste solo, as obras escamaram as obscuras entranhas de uma realidade social. Em meio ao dito “cenário de desenvolvimento urbano”, pessoas são lançadas ao chão, fazem do papelão colchão, do pano roupa cobertor e do pedaço de pão banquete; são praticamente ignoradas por aqueles que passam. Na verdade, elas só saem do ostracismo quando incomodam a sociedade, seja o sossego ou o espírito. “Muitos dos andarilhos nem oferecem riscos aos transeuntes, mas o aspecto físico dessas pessoas traz medo”, são as palavras do comandante da 21ª Companhia da Polícia Militar, Major Perez, responsável pelo patrulhamento da região.

Diretamente envolvido na questão, o orientador social da Pastoral de Rua, José Coelho da Silva, coloca esta mesma situação, agora, sob o prisma dos sem teto. “É preciso que o morador de rua tenha acesso a todos os benefícios sociais, a todas as políticas sociais como qualquer outro cidadão, mesmo que a sociedade não veja o morador de rua como gente. Às vezes, o enxerga como bandido, como assaltante, ladrão, sujo, imundo, mas não como gente”, interpõe José Coelho.

Pautados a cobrir a duplicação de uma das principais avenidas de Belo Horizonte, nós, Bruno, Frederico e Rubem, partimos rumo à matéria. Imaginando as dificuldades de abordagem, e mesmo com receio, a preocupação com as atitudes e as palavras tomam conta da conversa ritmada pelos passos em direção ao costumeiro lugar onde ficam os moradores de rua da região. Já de esquina, um jovem, que não deve ter mais que seus 27 anos – mas transpassando um sofrimento de uma vida – vem em nossa direção e passa entre nós. Foi-se aí a primeira palpitação. Era a fala do Major Perez se materializando.

Com o início das obras, a população de forma geral passou a sentir mais insegurança ao transitar pelas proximidades. O estudante de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) Rafael de Castro, se diz mais temeroso quando retorna para casa. “Durante o dia é possível ver pessoas consumindo drogas com tranquilidade e com essas obras a região ficou muito escura à noite. Tenho muito medo, principalmente quando estou sozinho”.

Segundo o Major Perez, a questão da iluminação foi levada pela PM à Prefeitura e refletores foram voltados para as calçadas e canteiros de obras foram instalados com o intuito de dar mais visibilidade e transpassar mais segurança aos pedestres. No que se refere à sensação de segurança, Perez pontua questões importantes. “Na verdade o que se trabalha são dois quesitos: o da segurança objetiva, que é aquela que realmente é visível e mensurável e o da segurança subjetiva, que é a sensação de segurança da população. No caso da duplicação da Antônio Carlos, eu acredito que apenas a segurança subjetiva foi corrompida, uma vez que os números de ocorrências se mantiveram estáveis”, pondera o militar.

Indo em frente, observamos um carro de reportagem da TV Record. Mesmo jornalistas, não nos passa à mente traçar o caminho dos estúdios, somos três detentos do jornalismo impresso. Pois bem, entre carros estacionados, cercas de proteção, máquinas, operários, buracos e desvios surgem aos olhos a Igreja de São Cristóvão e, abaixo, amontoados sobre a encosta gramada, um grupo de moradores de rua. De um lado o progresso, na duplicação do grande corredor viário, do outro a miséria.

As obras de duplicação da Avenida Antônio Carlos são fruto de um convênio entre o Governo do Estado e a Prefeitura de Belo Horizonte. Nesta segunda fase, estão sendo investidos recursos da ordem de R$ 250 milhões no alargamento da pista, na construção de sete viadutos e nas desapropriações de imóveis, de acordo com os dados oficiais.

Do alto da rua Diamantina, próximo ao UNI-BH, o que se avista é um clarão, consequência das dinamitações e das retirada das moradias que margeavam a grande avenida, muitas delas ocupadas por pessoas à margem da sociedade. O cenário parece tornar mais visível a fragilidade da estrutura social, como observa José Coelho: “quem está no percurso desse projeto de reorganização e reurbanização aqui da Avenida Antônio Carlos, com certeza a prefeitura vai tirar. Nós não temos como impedir isso”. O coordenador da Pastoral da Rua complementa ainda que o desenvolvimento urbano, não comporta a pessoa em situação de vulnerabilidade como é o caso da população de rua. Já o Major Perez ressalta que a derrubada dos prédios provocou o deslocamento dos desabrigados e dos dependentes químicos, assim, eles ficaram mais expostos, refletindo na segurança subjetiva. “Nós tínhamos vários lugares onde eles ficavam escondidos. Com a retirada desses prédios em que eles ficavam entocados, com a abertura dos terrenos baldios, eles passaram a ficar expostos. Deste modo, a sociedade passou a visualizar-los com mais facilidade”, conclui.

A poucos metros do grupo, Frederico já toma a frente decido e um tanto quanto destemido e abrupto. Em contrapartida, recebe olhares fuzilantes dos cerca dos 12 andarilhos ali reunidos. Depois de três dúzias de palavras sobre as intenções e usos das entrevistas, ele ouve um “a gente não tem nada para falar não”. Desconfiados, perguntam mais duas vezes sobre de onde éramos e por que queríamos seus depoimentos. Mais três dúzias de palavras e veio a sentença: “a gente não tem nada para falar não”.

Ao insistir um pouco mais com uma senhora que permanecera deitada sobre a grama, já que os demais já tinham se levantado e se afastado um pouco – coisa de três ou quatro passos –, ouvi-se a determinação: “Pode parar de falar, eles são da Record. Olha o carro deles lá”. Olhamos para o lado e instantaneamente identificamos no homem moreno, alto, com certo vigor físico e melhor trajado a liderança do grupo. A partir da determinação, qualquer negativa de que éramos da TV foi em vão. Ainda assim, a senhora deitada na grama apontou para outro morador de rua um pouco a nossa esquerda. “Fala com o Gaúcho ali”, disparou. Foram mais quatro passos. Mais três dúzias de palavras sobre as intenções e usos das entrevistas. Um pouco mais receptivo, o Gaúcho (como era de se esperar) disse-nos que não era de Belo Horizonte e estava a pouco tempo na cidade. Novamente a voz ríspida censora do homem que detém a liderança se sobressai ao barulho das obras, dos carros, das pessoas e da voz do Gaúcho. “Cala boca Gaúcho!”

Na situação, um tanto quanto tênue, obedecemos ao nosso instinto de segurança e, ao sairmos dali, ainda foi possível ouvir a seguinte declaração do Gaúcho: “O ruim dessas obra é que as enfermeira gostosa só passam do outro lado agora. A gente gosta é de ver muié né?!”.

Um alento frente às intempéries da vida

Há 17 anos o Albergue escreve páginas de histórias que jamais serão contadas

O ponteiro do relógio se aproxima do número um. O sol está soberano no céu e na terra, entre, buracos e telas de proteção, nossa reportagem avança rumo a uma das regiões mais carentes e delicadas de Belo Horizonte: a famigerada Cracolândia. É lá, encravado entre o “atraso” e o “novo”, que fica o Albergue Noturno Municipal.

Nos dois quarteirões que separam a Avenida Antônio Carlos do Albergue, nos deparamos com andarilhos, moradores da região e usuários de crack. Entretanto, na maioria dos casos, o olhar rápido e ressabiado, não permite diferenciar uns dos outros. Para nós, vindos de fora, isso é mais evidente ainda. O olhar fica fixo à frente, a conversa adquire um tom mais brando. Muros pichados, lixo espalhado pelas ruas, o barulho das obras lá embaixo. O clima se torna opressor e pouco atrativo.

Quando chegamos, contaminados pelo ambiente tenebroso da caminhada até o local, o que imaginávamos era uma recepção muito fria. Erramos. Fomos prontamente atendidos e bem recepcionados por todos que rapidamente nos encaminharam até onde ficava a sala da coordenação. Nesse horário, ao contrário dos moradores de rua, quem reinavam absolutos eram os pequenos: um projeto social instalado ali, e que atende crianças e adolescentes da Pedreira Prado Lopes e região.

Beliches e mais beliches estão espalhadas pelo galpão, um grupo de funcionários recebe e pesa os alimentos que serão preparados para os usuários que chegariam dali a algumas horas. Ambiente limpo, ventilado, ar fresco, ao contrário do senso comum que nos contamina, a priori, o Albergue é um lugar “confortável” e acolhedor. Quem nos recebe, pede um tempo para terminar de ler uma carta.“Uma pessoa está precisando de ajuda e solicitou que eu lesse a carta”, disse. Seus olhos correm rapidamente pelas palavras de alguém que sofre. A leitura chega ao fim e submergindo daquele outro universo, nosso entrevistado fala: “vamos começar?”.

O Albergue Noturno Municipal foi fundado em março de 1992 e tem a Associação Grupo Espírita “O Consolador”, como instituição gerenciadora em parceria com a Secretaria Municipal Ajunta de Assistência Social. A capacidade atual é de 320 pessoas hospedadas. De acordo com o diretor/coordenador da instituição, Gladston da Silva Lage, as pessoas devem ser mais “científicas” e estar menos suscetíveis a influências externas, em relação ao modo de ver os moradores de rua.

Os que ali frequentam são recebidos a partir das 18 horas pelo pessoal do serviço social, que os credencia e encaminha para o banho e para as refeições. Existe também a assistência: referência de telefones e endereços e atendimento à saúde. Esse credenciamento personalizado ajuda a evitar o anonimato urbano, a invisibilidade social de quem não tem endereço ou referências e que muitas vezes, morre como indigente ou se degrada até o último suspiro nas ruas da capital.

Ali, muitas vezes os sonhos terminam e, em outras ocasiões, os sonhos começam. Pessoas que vieram em busca de um emprego e não tem onde se instalar. Buscas infrutíferas por parentes distantes. Emigrantes que ao desembarcarem em nossa grande jabuticaba são assaltados e têm roubadas, não só suas posses: sua identidade e sua dignidade desaparecem.

“Do ponto de vista de reurbanização penso em termos de que hoje o ser humano tem que se vacinar um pouco. A gente está muito na perspectiva de que vai valorizar os imóveis, vai melhorar as vias de acesso, o espaço vai ficar mais bonito, mais público, menos pobre. Eu acho isso meio temerário”, pondera o coordenador.

Projeto social tenta minimizar a situação dos sem teto


Na batalha entre homens e máquinas, os carros vão ganhando de goleada

As obras de duplicação da Avenida Antônio Carlos poderão até trazer “benefícios permanentes”, um deles é tornar o trânsito melhor e mais rápido para motoristas, passageiros e pedestres. Esta, com certeza, é a meta principal da empreitada, se vai ser realmente alcançada, só saberemos futuramente. A julgar pelo crescimento que a frota de veículos vem alcançando, tal iniciativa, pode-se configurar apenas como paliativa diante do fluxo cada vez maior.

E os transtornos? Também serão permanentes? Os Problemas sociais não vão diminuir quando a duplicação se encerrar, quem constata isso é o coordenador do Movimento de População de Rua, Paulo César. Segundo ele, os problemas com moradores de rua já ocorriam na região independemente da obra. “As pessoas procuram a região da Lagoinha por causa do trabalho de reciclagem, tem um grupinho muito pequeno moradores de rua deste lado. Agora próximo ao metrô é que há uma grande concentração”, disse.

O Movimento de População de Rua é uma iniciativa nacional cujo objetivo é melhorar a situação dos desabrigados. Conta, inclusive, com o apoio do ministro do Desenvolvimento Social e combate à Fome, Patrus Ananias. Diferentemente de São Paulo e demais localidades, que tem dificuldades de se estabelecerem em lugar fixo, aqui em Belo Horizonte o movimento tem uma sede permanente, trata-se de uma sala onde funciona a coordenadoria, concedida pela Pastoral da Rua.

O intuito dos organizadores, de acordo com Paulo César, é tornar o movimento cada vez mais formal para, desta forma, poderem brigar por vagas em conselhos, congressos e seminários voltados para assuntos de interesses dos moradores de rua. Paulo que já chegou a sair das ruas em quatro oportunidades destaca: “Uma pessoa só se desvincula totalmente das ruas, depois que ela adquire sua propriedade. Isto, para o morador de rua, é o máximo, é o céu”.

Reportagem: Bruno Carvalho, Frederico Müller e Rubem Fernandes

Um comentário:

  1. -Concordância: da retirada (-1);
    -Vírgula entre sujeito e verbo: o desenvolvimento urbano não comporta (-1);
    -Concordância: pessoas que não têm (-1).

    Texto muito bom. E em estilo que nos traz a interpretação em primeira pessoa.

    Nota: 22/25.

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